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Bird Box e o processo psicoterapêutico

A psicóloga Paula Arenhart estreia a coluna de convidadxs aqui no site. Ela traz uma compreensão sobre o filme Bird Box (2018) e o usa como metáfora para falar do processo psicoterapêutico. O texto fará mais sentido se você já viu o filme e, sim, tem spoiler. Prepara a pipoca e se joga na leitura!


 

Malorie chega ao filme como alguns pacientes à psicoterapia. Há uma resistência grande em implicar-se. Ela vem negando a maternidade, cogitando a adoção, afastando seus afetos e eximindo-se daquele papel assim como vem o paciente, negando-se, colocando seus desconfortos pra debaixo do tapete, ainda sem querer, ou poder, dar conta daquilo que a vida fez de si.

O caos se instala, tudo que ela tem como referencial de vida e mundo vai sendo destruído. Ela é retirada, à força, pelas circunstâncias, de todos seus espaços de conforto e conhecimento. Se dá conta que não pode mais cegar-se e inicia um processo doloroso e lento de demonstração de vulnerabilidades. As relações sociais e afetivas dela vão sendo reconstruídas, assim como se propõe a reconstrução afetiva na relação psicoterapêutica. Há força e há também conquista do paciente em busca de ajuda. Mas esse assentar-se, acostumar-se ainda é seco. O afeto é tolerado, mas não assimilado. As mudanças são engolidas, mas à seco, sem satisfação, sem conforto. Há, durante o filme, assim como no processo psicoterapêutico, uma conquista penosa e longa do ato de responsabilizar-se, assumir aquela nova vida, apropriar-se do que é seu, mesmo que o seu não seja o desejado.

Ao longo da trama, Malorie conquista um espaço relativamente seguro e confortável. Tem um companheiro corajoso e com ele aprende a se proteger dos perigos do novo mundo. Se viram como podem e desfrutam pequenos momentos de felicidade. Acaba se amparando nesse novo arranjo de vida e apesar de entender suas limitações e sentir suas faltas, quer mantê-lo. Se agarra à ele. Se opõe à ideia de arriscar a viagem no rio. Se apega àquela vida limitada como se apegava à vida sem filhos. Resiste. Assim geralmente se desenrola o processo psicoterapêutico. Após a instalação do caos, um bom período de bem-estar e calmaria se arranja. Traz paz, apesar das claras limitações.

Mas a vida joga, impele à continuidade de um novo arranjo ou à desistência de trilhar o caminho. Impõe ao apego ou a elaboração.

Há força. Há reconstrução de confiança. Há finalmente um real responsabilizar-se. Malorie se joga ao rio como o paciente que ultrapassa essa grande barreira da resistência do conforto, do ‘está tudo bem melhor’. Há uma implicação pessoal, mobilização de força individual que só é possível porque outrora estava subsidiada pelo amparo de seu companheiro Tom, ou da vinculação terapêutica. É um real ‘conseguir andar de bicicleta sem rodinhas’, mas apenas porque por um bom tempo as rodas estiveram ali, amparando, sustentando, apresentando.

Há então a chegada ao ‘local prometido’. Aquele que nunca é o idealizado inicialmente. Aquele em que Malorie só queria continuar sua vida de não-mãe, num mundo sem zumbis e sem fumaças da morte. É uma conquista, mas assim como no processo psicoterapêutico, é uma conquista sempre parcial. Há mérito, implicação, pertencimento e estabilidade. Mas ainda assim, não há garantia de salvação, de manutenção. Não há cura. Há apenas uma grande ampliação de possibilidades de sentido.

Como num processo psicoterapêutico, é depois do caminhar, do trabalhar psiquicamente que ela consegue nomear os filhos, dar sentido às experiências do trajeto, só após o percurso do rio, aquela maternidade, ou qualquer outra questão psicoterapêutica faz sentido, é própria.

Texto: Paula Arenhart | Psicóloga | CRP 06/126122

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