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Psicoterapia online funciona?

Conversar com uma terapeuta por chamada de vídeo no computador, ou até mesmo pelo celular, não é exatamente uma novidade. E a regulamentação nº 11/2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), tornou essa modalidade de atendimento uma realidade mais concreta e legalmente autorizada*.

Mas como acontece uma psicoterapia online? Quais as indicações, contraindicações, especificidades, ganhos e perdas em conversar sobre suas questões pessoais num encontro virtual?

Antes de tudo, é importante ressaltar dois pontos: um, psicoterapia online é diferente da presencial, e dois, o trabalho psicoterapêutico é possível, mesmo que online.

Por que é diferente?

Pelo simples fato de ser diferente. Uma coisa é você se deslocar dentro da sua cidade, entrar numa sala que foi preparada para sua chegada, sentar (ou deitar) na presença de outra pessoa, poder olhar e até abraçar sua terapeuta. Outra coisa é você mesmo preparar o local da sua terapia e se conectar numa chamada de vídeo, ver apenas o rosto de quem fala com você, e não a pessoa como um todo.

É diferente porque é, e eu apontei apenas algumas diferenças. Nossa, falando assim até parece frio e distante fazer terapia online, né? Mas vamos com calma e lembremos do segundo ponto: o trabalho psicoterapêutico é possível, mesmo que online.

A psicoterapia online pode funcionar muito bem e ser bastante efetiva. Ser diferente não significa ser ruim ou pior. Tudo vai depender de como esse trabalho será feito.

Mesmo online, a(o) psicoterapeuta pode oferecer um serviço de qualidade. E ele deve ser feito com cuidado, ética, coerência, sigilo, sensibilidade e responsabilidade. Os detalhes (frequência, duração, valores, etc) variam de profissional para profissional, assim como no atendimento presencial. Na modalidade online outros fatores importantes entram na conta, como o aplicativo utilizado nas chamadas, a qualidade da internet e cuidados com o local que o paciente (ou cliente) fará as sessões.

Qualquer um pode fazer psicoterapia online?

Entendemos as especificidades e como funciona. Agora, qualquer um pode fazer psicoterapia online? De acordo com o CFP até crianças e adolescentes podem passar por um processo psicoterapêutico online, desde que mediante autorização de ao menos um dos responsáveis legais.

O Conselho não permite atendimento online em circunstâncias de emergência, urgência e desastres, assim como não autoriza atendimento online a pessoas em situação de violência ou violação de direitos. Então muitas pessoas podem se beneficiar da psicoterapia online.

Acredito que a modalidade online serve para quando outra forma não é possível**. Apesar disso, se você precisar escolher entre psicoterapia presencial com uma profissional que não fala seu idioma nativo ou psicoterapia online com alguém do seu país de origem, recomendo a segunda opção. Fazer psicoterapia na sua língua materna pode lhe proporcionar maior fluidez na fala e nos pensamentos.

A língua não diz respeito apenas às palavras, mas ela é carregada de afeto, isto é, traz consigo sentimentos, sensações, sentidos, lembranças.

Além disso, o idioma também tem a ver com cultura. Para quem sai do seu país de origem, principalmente no período de adaptação (que varia de pessoa para pessoa e depende das condições da mudança), conversar com alguém que entende seu jeito de se comunicar pode ser mais importante e efetivo do que falar com alguém presencialmente, mas que tem outro idioma como referência principal. Sem generalizar, ok? Pois fazer psicoterapia com profissionais de outras línguas pode funcionar sim para algumas pessoas.

Psicoterapia online para brasileiros que moram fora do Brasil

Por todos os motivos que explanei, meu foco maior para atendimento online é com brasileiras e brasileiros que moram fora do Brasil.

Percebo o quanto é acolhedor para brasileiros que vivem em outros países poder falar em português sobre seus sofrimentos e suas questões. Muitas vezes a chegada num novo país exige uma série de adaptações. Fazer psicoterapia sem ter que cuidar com a adaptação da língua traz conforto e segurança.

Um exemplo simples pode ajudar a entender a relação existente entre língua e afeto. Estudei na Argentina por alguns meses e dividia a casa com várias pessoas, entre elas, algumas brasileiras. Fizemos o acordo de conversar apenas em espanhol, mesmo que fosse só entre nós. Levávamos esse combinado de forma rigorosa. Entretanto, numa noite de conversas mais pessoais com uma amiga brasileira entramos num assunto carregado de emoções pra ela e ela quis me contar uma situação pela qual passou.

Nesse momento ela disse: “ah, vou te contar isso em português, é melhor”. Trago também um exemplo pessoal. Em uma discussão com um colega argentino eu fiquei muito brava e com muita raiva. Qualquer coisa que eu falasse em espanhol era insuficiente. Só quando eu me expressei em português é que senti um alívio, e mais, só ao falar em português senti que estava falando, de fato.

Em psicoterapia é comum aflorar sentimentos, chegar a histórias ou assunto que você nem imaginava que precisava falar.

Quanto mais esse processo for espontâneo e fluido, melhor. E o idioma pode contribuir ou atrapalhar essa jornada. Nós vivemos num mundo em que a psicoterapia online já acontece e lutar contra isso sem antes tentar essa experiência só nos distancia dessa possibilidade. Isso já está aí, então o que podemos fazer é fazer bem feito, com ética, cuidado e seriedade. E então, “Psicoterapia online funciona?”. Psicoterapia online funciona!

 

* Na resolução anterior (nº 11/2012) os atendimentos psicoterapêuticos realizados online tinham número limite de sessões permito pelo CFP e valiam apenas se em caráter experimental.

** Com as medidas de segurança necessárias com a pandemia do COVID-19, por exemplo, o possível é continuar os processos presenciais de forma online. Já estamos perdendo muito com o distanciamento social, e perder a psicoterapia agora seria perder demais. Poder contar com um espaço em que você possa falar do seu sofrimento, em que você possa receber suporte e acolhimento numa situação tão nova como a que estamos enfrentando, pode ser o diferencial na lida com a atual configuração mundial.

Bird Box e o processo psicoterapêutico

A psicóloga Paula Arenhart estreia a coluna de convidadxs aqui no site. Ela traz uma compreensão sobre o filme Bird Box (2018) e o usa como metáfora para falar do processo psicoterapêutico. O texto fará mais sentido se você já viu o filme e, sim, tem spoiler. Prepara a pipoca e se joga na leitura!


 

Malorie chega ao filme como alguns pacientes à psicoterapia. Há uma resistência grande em implicar-se. Ela vem negando a maternidade, cogitando a adoção, afastando seus afetos e eximindo-se daquele papel assim como vem o paciente, negando-se, colocando seus desconfortos pra debaixo do tapete, ainda sem querer, ou poder, dar conta daquilo que a vida fez de si.

O caos se instala, tudo que ela tem como referencial de vida e mundo vai sendo destruído. Ela é retirada, à força, pelas circunstâncias, de todos seus espaços de conforto e conhecimento. Se dá conta que não pode mais cegar-se e inicia um processo doloroso e lento de demonstração de vulnerabilidades. As relações sociais e afetivas dela vão sendo reconstruídas, assim como se propõe a reconstrução afetiva na relação psicoterapêutica. Há força e há também conquista do paciente em busca de ajuda. Mas esse assentar-se, acostumar-se ainda é seco. O afeto é tolerado, mas não assimilado. As mudanças são engolidas, mas à seco, sem satisfação, sem conforto. Há, durante o filme, assim como no processo psicoterapêutico, uma conquista penosa e longa do ato de responsabilizar-se, assumir aquela nova vida, apropriar-se do que é seu, mesmo que o seu não seja o desejado.

Ao longo da trama, Malorie conquista um espaço relativamente seguro e confortável. Tem um companheiro corajoso e com ele aprende a se proteger dos perigos do novo mundo. Se viram como podem e desfrutam pequenos momentos de felicidade. Acaba se amparando nesse novo arranjo de vida e apesar de entender suas limitações e sentir suas faltas, quer mantê-lo. Se agarra à ele. Se opõe à ideia de arriscar a viagem no rio. Se apega àquela vida limitada como se apegava à vida sem filhos. Resiste. Assim geralmente se desenrola o processo psicoterapêutico. Após a instalação do caos, um bom período de bem-estar e calmaria se arranja. Traz paz, apesar das claras limitações.

Mas a vida joga, impele à continuidade de um novo arranjo ou à desistência de trilhar o caminho. Impõe ao apego ou a elaboração.

Há força. Há reconstrução de confiança. Há finalmente um real responsabilizar-se. Malorie se joga ao rio como o paciente que ultrapassa essa grande barreira da resistência do conforto, do ‘está tudo bem melhor’. Há uma implicação pessoal, mobilização de força individual que só é possível porque outrora estava subsidiada pelo amparo de seu companheiro Tom, ou da vinculação terapêutica. É um real ‘conseguir andar de bicicleta sem rodinhas’, mas apenas porque por um bom tempo as rodas estiveram ali, amparando, sustentando, apresentando.

Há então a chegada ao ‘local prometido’. Aquele que nunca é o idealizado inicialmente. Aquele em que Malorie só queria continuar sua vida de não-mãe, num mundo sem zumbis e sem fumaças da morte. É uma conquista, mas assim como no processo psicoterapêutico, é uma conquista sempre parcial. Há mérito, implicação, pertencimento e estabilidade. Mas ainda assim, não há garantia de salvação, de manutenção. Não há cura. Há apenas uma grande ampliação de possibilidades de sentido.

Como num processo psicoterapêutico, é depois do caminhar, do trabalhar psiquicamente que ela consegue nomear os filhos, dar sentido às experiências do trajeto, só após o percurso do rio, aquela maternidade, ou qualquer outra questão psicoterapêutica faz sentido, é própria.

Texto: Paula Arenhart | Psicóloga | CRP 06/126122